quinta-feira, 25 de setembro de 2014

para que servem as mães

E há aqueles dias em que a melancolia apenas chega, assim, sem oi ou nada. Se instala, mesmo estando tudo bem, desfaz a cama e se ajeita, pedindo pra gente deitar.
E mesmo se está tudo certo, tudo bem, qualquer folha caindo pode trazer a lembrança da ausência, assim, esquisito desse jeito: lembrar a falta.

E pode ser porque caiu um ovo e se quebrou, a gente ficou tão irritado.
Ou pode ser porque leu no portal que aquele jovem morreu desidratado, e ficou pensativo nas coisas que, tendo tudo para dar certo, não dão. 

(A vida, imprevisível, ganha sempre de lavada.)

Mas se alguém perguntar se é saudade, eu direi: não, não é. Porque saudade é outra coisa, talvez, ou talvez eu apenas não saiba o que saudade é, talvez não saiba, talvez me falte um gen ou parafuso — quem vai saber? Mas quando me perguntam, digo não, sem medo de estar mentido.

No entanto, basta uma folha cair, basta um inseto, basta o olhar do gato, basta ouvir uma canção qualquer pro coração ser inundado por um sentimento estranho, uma emoção que quer chorar, talvez pra dizer algo que eu não saberia.

Não choro. Que entre e o coração e os olhos eu fui construindo barreiras, nem sei bem porquê. O olho seco e o coração transbordando, sem ninguém perceber. Se eu falar, a voz trairá, então não.

Que de algum modo cheguei até aqui, e nem é que foi fácil, mas eu não tive medo.
No entanto, agora, a canção resvala e me atinge feito mil flechadas, tudo dói, mas nada nada é tristeza — e nem poderia, não há razão.

Mas a canção me lembra a falta.
E se não fosse tão piegas, eu diria "Dedico esta canção para você, meu amor", então não digo.

Só penso. 

E cantarolo dentro, sabendo: eu poderia ter escrito essa canção para você. Toda mãe poderia.

Heart beats fast  / Colors and promises / How to be brave / How can I love when I'm afraid / to fall  But watching you stand alone/ All of my doubt / suddenly goes away somehow 
One step closer 
I have died every day waiting for you/ Darling don't be afraid / I have loved you / for a thousand years / I'll love you for a thousand more  
Time stands still/ Beauty in all she is / i will be brave / I will not let anything take away / What's standing in front of me / Every breath / Every hour has come to this 
One step closer 
I have died every day waiting for you/ Darling don't be afraid / I have loved you / for a thousand years / I'll love you for a thousand more 

And all along I believed I would find you / Time has brought your heart to me / I have loved you for a thousand years / I'll love you for a thousand more





One step closer — cada dia é um.
Eu conto os dias como não contei antes, talvez?

Minto. Não por querer mentir, apenas precisei lembrar que foi assim antes de você nascer — one by one, até você chegar.

Para que servem as mães que não seja amar os filhos mil anos antes deles nascerem e mil anos depois?

Para toda eternidade, e além dela?,  amém.








segunda-feira, 8 de setembro de 2014

mundo mundo vasto mundo


Primeiro  um vídeo sobre família.
Na sequência uma postagem da Cora Ronai, dizendo "Famílias não deviam nunca morar em países diferentes..."
Então uma dor miúda vibrando lá dentro, cansada. De ser dor sem conserto, de doer sendo inútil.

Mundo mundo vasto mundo.
A gente pare os filhos, a gente cuida, a gente quer perto. A gente quer a mão ao alcance do toque. A gente quer passar no fim da tarde para um café, saber como vai tudo. A gente quer estar junto no dia do aniversário.

Mas há a vida, e a vida leva pra outros cantos, a gente até vibra.  Porque a gente pare os filhos, a gente cuida, a gente quer que sejam felizes, a gente deixa que eles partam - até porque não nos cabe outra escolha. E eles se vão, confiantes, viver outras coisas, o amor da gente olhando de longe, vibrando com as conquistas, de prontidão para as eventuais derrotas. A gente aceita.

Porém.

A dor miúda. Cansada de ser dor, vira conformação - mas uma conformação rasteira, quase falsa.

E às vezes eles vão pra voltar, a gente sabe, é mais simples. Noutras eles fincam raízes, então é nunca mais.

É normal, a gente entende, a gente sabe. Que a gente pare, a gente cria, a gente cuida, a gente apoia, a gente os quer felizes. A felicidade deles é a nossa.

Mentira.

Porque os Natais nunca serão os mesmos - sempre faltará um ou outro ou tantos.
Que nunca mais será possível abraçar todos e chorar no primeiro minuto do ano.
E isso dói.

Porque os filhos crescem e o amor por nós se transforma, o deles.
Mas o amor de mãe, este não muda. Inda que a gente saiba que há um mundo vasto adiante e que é natural que assim seja. Inda que a gente entenda que agora eles têm outros apelos e amores e outra vida. Inda que a gente saiba, desde que os colocou no mundo, que assim seria.

Inda assim, dói. Mesmo que a gente não se descabele, dói. Mesmo que a gente diga "tudo bem", está doendo.

Que o sonho que havia era outro: todos juntos. E o sonho não é mais possível. E o coração será para sempre fragmentado e frágil, dentro e fora tudo dolorido, mesmo quando a gente dá um abraço, um sorriso, e diz pro filho: Vai!


"Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é o meu coração."




quarta-feira, 27 de agosto de 2014

e por falar em saudades

E lá se foram 10 dias.

Até aqui, de cá, tudo bem. Do lado de lá, ela reporta deslumbramento e cansaço, alternando, que o novo faz pipocarem os olhos e os pés até a mais completa exaustão. Ninguém falou de saudade — nem cá, nem lá —, e é natural que seja assim, nenhum reparo merece a saudade inda ausente nas conversas triviais onde ela me conta por onde andou e eu pergunto como tudo vai, se os holandeses são mesmo tão lindos assim. Em cada sinal que ela digita, veloz, antes de ser engolida pela madrugada, eu sinto o coração apaziguado porque sei que ela está feliz.

Até aqui, tudo lindo, cá e lá — exceto porque ela ainda não conseguiu comer bem. Para os holandeses, a ênfase é no jantar — então ela tem sofrido com a falta de calor no estômago na hora em que a fome bate e que é preciso almoçar. Mea culpa, preciso admitir, já que ela foi criada sob a égide da minha máxima filosofia: se não é quentinho, não mata a fome. Acreditou. E agora sofre para obter satisfação no mundo desinteressante das saladas e dos sanduíches frios, ao invés dos estrogonofes, do feijão com batata frita, das farofinhas amanteigadas, dos filés com mostarda, dos suflê de cenoura e dos cremes de milho aos quais se acostumou. Imagino o que não será capaz de fazer, em alguns meses, por uma fatia do meu empadão! É aí que a primeira saudade vai começar a pegar. Ou não. Como tudo mais na vida, a tendência é a gente se adaptar, então é provável que em pouco tempo ela deixe simplesmente de resistir e, sem nem se dar conta, de súbito o desinteressante universo dos vegetais poderá ser a própria visão da felicidade, em cores verdes e gotículas de limão. Que há de haver limão por lá, não há?



Porém, a essa altura, possivelmente já será inverno: o novo já não será tão novo assim, as noites serão longas e tudo será frio, muito frio, desesperadoramente frio para uma menina tupiniquim que se criou na aridez que é Brasília, onde até chove, mas passa tanto, tanto tempo sem chover, que a gente até esquece como é. Adaptadas as necessidades básicas, instalada a rotina mínima, é quando a segunda saudade poderá surgir, agora mais definida, corpulenta até, imiscuída no olhar talvez desinteressado sobre aquele carvalho centenário que a gente já viu mais de mil vezes, disfarçada na complicação da hora de lavar o cabelo, na preguiça de ir pra rua, já que chove tanto. Uma armadilha da qual é difícil de escapar.

Daqui, eu provavelmente estarei padecendo da falta que ela me faz em cada pequena coisa que eu fizer, vitimada pela virulência da segunda saudade, talvez refém da incredulidade que ainda ontem eu expressava enquanto repetia, ao telefone, numa conversa com minha irmã: 

Marcela está morando em outro país. 
Morando em outro país. 
Mo-ran-do. 
Ou-tro-pa-ís. 
Marcela está morando em outro país!

Tantas palavras e meandros e volteios para dizer, simplesmente, que não obstante estar tão tão feliz por ela, eu ainda não acredito.

Acho, daqui, que ela também não.


















terça-feira, 19 de agosto de 2014

asas para voar





Era uma vez, ou era outra?, uma menina que brincava.
Um passo, uma pausa, um susto no céu, 
 - que ela pulava alto, esticando os braços para alcançar talvez estrelas,
talvez trazê-las, talvez não.
Até que um dia um avião, e ela voou longe, longe:
não brincava mais; mas ria,
as estrelas ali, ao alcance das mãos.










segunda-feira, 18 de agosto de 2014

ainda sobre partir

E vai no passar das horas a sensação do "e agora?", jogada feito um "flit paralisante qualquer" nos meus olhos perplexos.
Notícias de lá, tudo bem, tudo indo, o tempo está instável, o alojamento é fofo, mas está vazando água do frigobar — indicativo precioso de que os frigobares são rebeldes, praticamente os blackblocks dos eletrodomésticos: não respeitam nada, nem mesmo as terras de Holanda, contrariando a nossa ideia tupiniquim de que nunca na história de Amsterdã um aparelho ousaria apresentar falha ao funcionar.
Gente, muita gente, de tudo quanto é canto — ela falou no
whatsapp, me mantendo informada dos primeiros passos. E também graças à tecnologia, já compartilhou a carteirinha de estudante onde se nota que primeiro nome, por lá, é bobagem: oficialmente, ela é M. Miss M, eu apelidei, achando engraçado.
Vencidos os primeiros momentos, o coração repousa apaziguado porque o avião decolou e aterrissou, porque ela já está na universidade, porque ela já está no alojamento, porque nada de terrível aconteceu nessas primeiras horas em que meu olhar protetor não estava ao alcance, espantando o mau-olhado, livrando-a de todo o mal, amém. Que eu sei, todo mundo sabe, que a vida é essa, assim, que os filhos vão e vem, que a vastidão do mundo é uma explosão, que em tese eles ficarão bem, que é preciso desatar o nó (que a gente fez apertado) no cordão umbilical imaginário — mas.
Mas, substantivo inventado para traduzir a loucura materna de achar que se estivermos perto, nenhum mal acometerá nossos filhos (e se ousar acometer, espantaremos o mal com vassouradas, baigon, benzedeira, ibuprofeno, voadora, o que preciso for). E o difícil dessa experiência é predominantemente esta impossibilidade de protegê-la dos males invisíveis aos quais a gente já se acostumou e dos males desconhecidos, em terras estranhas, que a gente teima em inventar.
Essa sensação, eu sei (eu espero), vai passar. Ou não vai, e eu vou ter que conviver com ela todo santo dia, nos próximos 363. Alguma coisa vai sobrar desse aprendizado, nem que seja: não gostei nada, não quero a experiência outra vez.
That I would be good.




domingo, 17 de agosto de 2014

Dia de partir




Da primeira vez em que a vi até o dia de hoje, passaram-se 23 anos e 66 dias, ou perto disso. Cerca de 8.461 dias de convivência, desde aquele tempo em que ela não sobreviveria se eu não a alimentasse, trocasse, aquecesse.


E aquela garotinha gorducha que  um tempo atrás (parece que foi ontem) eu vestia e pajeava, que cantava "A cor dessa cidade sou eu..." com um aninho, e depois, aos 3, enchia os pulmões  pelas ruas do Rio de Janeiro, bradando dramática, enquanto abria os braços na posição do Redentor: "Cristo rebentou, braços abertos...." — era assim que ela entendia o Samba do avião), aquela garotinha que aos cinco se agarrava às pernas do irmão para ser arrastada pela casa, aquela garotinha que eu não liberava em muitos passeios de escola (cá entre nós, quem é que pode confiar em duas professoras num shopping tomando conta de 20 e poucas crianças pequenas?), aquela garotinha eu deixei hoje no aeroporto, e a esta hora ela está voando alto, literal e metaforicamente, a caminho de Amsterdã, onde viverá e estudará por um ano inteiro.


E eu não estou ao seu lado no avião, confortando-a ou conversando abóboras e berinjelas sobre as coisas mais filosóficas ou idiotas. E eu não estarei lá, segurando a sua mão quando ela desembarcar num lugar estranho, com gente esquisita (eu não tô legal, tô pensando em birita).


Eu não estarei lá.  Serão quase 365 dias de ausência, com planos de duas visitas (minhas), porque de outro modo vou pirar. E eu sei que será tão bom, e é tão importante, e é tao oportuno, e eu não sou do tipo que quer prender, eu apoiei e apoio e apoiaria outra vez a experiência.

Mas se ela tossir ou tiver febre, eu não estarei lá.
E se ela quiser chorar ou se sentir fraca e insegura, eu não estarei lá.
E se ela sentir medo ou vontade de comer cupcakes, eu também não estarei lá.

Mas eu não estar lá é o lado mais leve dessa moeda.
O que dói, nesse momento, é que ela não estará aqui.